Dolo eventual e culpa consciente: uma busca de critérios precisos de distinção


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Propõe-se que, na ausência de critérios mais precisos de imputação da teoria do consentimento, dominante no Brasil, passe a jurisprudência a exigir, para configuração do dolo eventual, além do assumir o risco, que o resultado seja agradável ao agente.
Elaborado em 02/2013.
Em razão da recente tragédia em Santa Maria, mais uma vez os penalistas são desafiados a pensar um dos temas mais delicados da teoria do injusto penal: a distinção entre dolo eventual e culpa consciente. Neste breve ensaio, que não tem a pretensão de resolver o problema,ao contrário, afastando-se de uma pura descrição doutrinária, questionase o método e os critérios adotados pela dogmática dominante;vem ainda alertar para a seriedade do problema e exigir um olhar mais atento para que o prático aplicador da norma possua menor arbítrio e maior segurança quando da imputação. Tampouco será analisado o caso concreto de Santa Maria, mas apenas a discussão abstrata dos institutos que vêm sendo questionados em relação ao ocorrido. A conclusão a que se chega é a de que a diferenciação de formas tão extremas de reprovação e ao mesmo tempo tão próximas em seus conceitos, estão, se usada a teoria dominante, na dependência de uma análise meramente hipotética sobre um elemento interno e psicológico do agente como “não se importar” e “assumir um risco” – de difícil alcance prático - o que violaria os princípios da culpabilidade e da responsabilidade subjetiva. Propõe-se que, na ausência de critérios mais precisos de imputação da teoria do consentimento, dominante no Brasil, passe a jurisprudência a adotar seus contornos iniciais na linha de exigir, além do assumir o risco[1], que o resultado seja agradável ao agente.Por fim, que a interpretação dogmática dos institutos se dê a partir de critérios político-criminais e dos princípios de direito penal. Vajamos por quê.
Diversos são os estudos que tentaram distinguir o instituto do dolo[2] eventual e culpa consciente. As teorias desenvolvidas às vezes têm pontos em comum, outras vezes se diferenciam logo em suas premissas, podendo-se formar, pelo menos, dois grandes grupos [3]. Num primeiro grupo encontram-se as chamadas teorias intelectivas, para as quais o decisivo é o domínio ou o conhecimento do agente acerca do resultado, dando menor importância ao aspecto volitivo, no qual podem ser destacadas: 1) a teoria da representação, desenvolvida por Horst Schröder e Schmdhäuser; 2) teoria da probabilidade, formulada por Hellmuth Mayer; 3) teoria da evitabilidade, de Armin Kaufmann; 4) teoria do risco, uma formulação de Frisch e 5) teoria do perigo a descoberto, de autoria de Herzberg. De outro lado, um segundo grupo pode ser identificado como sendo o das teorias volitivas, na qual o elemento vontade é que se mostra como decisivo, ao lado do domínio, na diferenciação entre dolo e culpa. Neste grupo destacam-se 1) a teoria da indiferença e 2) ateoria do consentimento ou da assunção (do resultado). Pela primeira, também chamada teoria do “sentimento” e desenvolvida inicialmente por Karl Engish e Exner, pretende-se a distinção em razão de um alto grau de indiferença para com a ofensa causada ao bem jurídico. A segunda teoria será discutida a seguir, por ter os critérios que,segundo a literatura penal dominante no Brasil, foi adotada pelo Código Penal brasileiro no art. 18 inciso I, sendo também a mais difundida nos manuais nacionais[4].Passemos à teoria do consentimento.
Segundo Lição de Juarez Cirino dos Santos “a teoria do consentimento, elaborada por Mezger, define dolo eventual pela atitude de aprovação do resultado típico previsto como possível, que deve agradar ao autor”. Mas o que caracteriza a teoria é o fato de que o agente deve “consentir”, “aceitar” ou “assumir o risco” de produzir o resultado, ficando a dependência do lado emocional (agradar-se) como uma exigência apenas de parte dos adeptos desta formulação. Assim, como expõe Cirino mais à frente, para alguns críticos basta que o agente assuma o risco, prescindindo-se da análise de se esse resultado é agradável ou não. Também Tavares subdivide a teoria do consentimento em duas linhas: a dos que exigem que o resultado seja agradável ao agente, e a dos que dispensam esse requisito. Sustenta a divergênciaque o resultado, sendo desagradável, não afasta a imputação por dolo eventual, pois do contrário estar-se-ia transformando esta figura de dolo indireto, em dolo direto.A proposição se afasta da ideia de Mezger, exposta no conceito anterior por Cirino dos Santos. Mais à frente comentaremos esta afirmação.
Na jurisprudência alemã é paradigmático um julgado de 1955 (BGHSt 7/ 365) ocorrido da seguinte forma: “A” e “B” pretendem roubar “C”. Para tanto, decidem impossibilitar a resistência da vítima amarrando seu pescoço com um cinto de couro para que venha a desmaiar. Observando que haveria um grave risco de a vítima vir a óbito, passam a um plano alternativo que é aplicar um golpe na cabeça de “C” com um saco de areia, provocando a inconsciência da vítima. O plano é inviabilizado, pois o saco de areia se rompe. Os agentes, que tinham plena consciência do risco de morte da vítima caso executassem o plano original, voltam a ele e amarram o pescoço da vítima com o cinto. Ao tentar reanimar “C”, “A” e “B” verificam que o risco se produziu e o resultado morte, de fato, ocorreu. Discutiu-se se a conduta seria culposa ou dolosa por dolo eventual. O critério de resolução do caso, conhecido como teoria (ou critério)do levar a sério, leva a conclusão de que ao retomar o plano inicial os agentes assumiram o risco e não se importaram com sua ocorrência, conduzindo à condenação e prescindindo-se do aspecto de agrado: resultado: dolo eventual.
A teoria do consentimento, como afirma Tavares, “aproxima-se bastante da posição assumida pelo código penal, que exige que o agente tenha assumido o risco de produção do resultado (...)”.No Brasil, por conta dessa identificação com as palavras descritas no artigo 18 do nosso Código, a teoria ganhou mais adeptos, sobretudo na variante que prescinde do agrado do agente quanto ao resultado. Parece irrecusável admitir a influência de uma teoria volitiva no artigo 18 do Código Penal. Não de hoje define-se o dolo, direto e indireto, como vontade e consciência da produção do resultado, pois na lição de Heleno Fragoso[5] “O dolo eventual põe-se na perspectiva da vontade, e não da representação, pois esta última pode conduzir também à culpa consciente. Nesse sentido já decidiu o STF (RTJ, 35/282).  A rigor, a expressão ‘assumir o risco’ é imprecisa, para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser interpretada em consonância com a teoria do consentimento.” E como exposto, a teoria do consentimento situa-se no grupo das teorias volitivas, não sendo correto dizer, como demonstrou Fragoso, que o disposto no artigo 18 - o “quis ou assumiu o risco” - dispense a vontade, no dolo eventual.
Paralelamente às formulações teóricas de distinção de dolo eventual e culpa consciente, são apresentadospor Frank dois critério práticos conhecidos como teoria positiva do consentimento e teoria hipotética do consentimento. Segundo Frank, haveria imputação por dolo eventual, e não mera culpa consciente quando a previsibilidade do resultado (que é comum aos dois meios de imputação: tanto na culpa como no dolo eventual) não impedisse a conduta do agente. Num exemplo grosseiro: quando o sujeito, prevendo o resultado como possível, agisse sem se importar com a sua ocorrência, haveria dolo eventual; de outro lado, quando ao agente for previsível um resultado incapaz de desencorajá-lo a agir, mas porque ele acredita e espera sinceramente na sua não ocorrência, haveria mera culpa. O critério não segue um maior rigor cientifico e é tido como uma formulação prática, com um grave problema: na prática também não é capaz de facilitar as coisas. A partir desse critério, fica o intérprete refém de um dado interno do sujeito; ficamos, para resolver o problema de imputação, com o ônus de responder uma indagação preliminar tão ou mais problemática do que aquela distinção, que é saber o que pensou o agente: se ele pouco se importou ou se esperava sinceramente a não ocorrência do resultado.
A fórmula de Frank deixa de ser um critério penal para ser uma análise processual penal – matéria de prova. Em vez de sabermos no plano teórico o que vem a ser dolo ou culpa, remetemos ao caso concreto e exigimos que o aplicador decida hipoteticamente se o sujeito, tendo certeza do resultado, agiria “pouco se importando” com sua produção. Nas palavras de Maria Del Mar Diaz Pita (apud Tavares), para as quais fazemos coro, “se a conclusão do juiz é que o sujeito haveria atuado também como o fez, ainda que tivesse tido a certeza daquilo que lhe parecia provável, então faz com que o sujeito responda por uma aceitação do resultado que, na realidade, não assumiu, por uma vontade que não teve, por algo que definitivamente não fez.”. O aplicador, para resolver um problema penal, teria que, a partir das provas produzidas, decidir o que teria feito, hipoteticamente, o réu; punindo-o na pendência de uma suposição inaceitável.Todos esses critérios apresentados agora, dominantes na jurisprudência e na literatura penal, deixam de apresentar uma formulação teórica definida que acaba gerando mais problemas do que soluções ao aplicador da norma. Ora, a função da teoria é apresentar critérios mais seguros de decisão. Perde o sentido a teoria do delito se seus conceitos abstratos ficarem na dependência das circunstâncias fáticas buscadas por meio das provas.
É preciso saber, e saber muito bem, no plano teórico, o que configura dolo e o que consiste em culpa, para deixar a cargo do processo, por meio do devido processo legal apenas onde se encaixa, no caso concreto, a conduta do agente. No Brasil as consequências desta indefinição são gravíssimas, senão vejamos. Caso o agente responda como dolo eventual, suas penas vão de 6 (seis) a 20 (vinte) anos no homicídio simples; se culposo, a máxima é de 3 (três). Num homicídio culposo, com uma conduta apenas, produzindo-se diversas mortes, como no caso de Santa Maria, a regra é aplicar o concurso formal, aumentando a sanção até a metade: três anos, mais um ano e seis meses, resultando, no máximo, em quatro anos e seis meses. No caso de homicídio por dolo eventual, há quem possa sustentar, em razão do dolo, a presença do chamado “desígnio autônomo” e pretender aplicar a regra do cúmulo matéria prevista na segunda parte do artigo 70 do nosso Código, ou seja: somando as penas. Num caso com 245 mortos, como em Santa Maria, aplicada a pena mínima de seis, somada 245 vezes pelo cúmulo material, teríamos uma condenação a 1.470 anos de reclusão, embora limitada a 30 de cumprimento por força do limite constitucional; contudo, com todos os benefícios tais como a progressão de regime calculados sobre o montante. Outra consequência é que a princípio não cabe prisão provisória em crimes culposos; cabendo, no entanto, em todas as modalidades de dolo (direto ou indireto) de homicídio.
Apresentar critérios seguros e conceitos precisos é o grande desafio da ciência do Direito Penal.O tamanhode sua importância fica claro quando nos deparamos com o tratamento dado a um e outro instituto como dolo eventual e culpa consciente. Se ainda não se apresenta como dominante uma teoria que dispense elementos psicológicos e dados ontológicos (teorias intelectivas), como na teoria da probabilidade, é preciso que tenhamos ao menos respeito aos princípios penais durante a persecução criminal e adoção do critério mais rigoroso na teoria do consentimento. Para tanto, é preciso, inicialmente, exigir, como Mezger, que o resultado previsto e cujo agente assumiu o risco de produzir se mostre agradável, ainda que este conceito se aproxime, como aponta a crítica, do dolo direito. Ora, o tratamento penal do dolo direto, no Brasil, é equivalente ao dolo eventual, então isto é um indicador de que os conceitos devem mesmo ser próximos.
A decisão do título de imputação deve ainda respeitar critérios político-criminais, porque os elementos ontológicos como “querer” e “assumir o risco”, elementos internos do agente, são, ainda, inegavelmente arbitrários. Assim, por exemplo, não nos parece correto imputar a um empresário que deixar de observar algumas regras de segurança e acaba dando causa, no exercício do seu negócio, à morte de diversas pessoas, com perigo para seus próprios funcionários e destruição de seu próprio estabelecimento é equiparado a um serial killer! É evidente que nessa situação, ainda que se aponte como previsível um resultado ou que se possa ver a criação de um risco proibido, é totalmente desagradável ao agente o resultado, tanto que se veicula na mídia que este tenha tentado o suicídio na prisão – o que não é de se espantar; e, por isso, o título de imputação deverá ser a culpa consciente. Mais, na linha tênue entre dolo eventual e culpa consciente, deve-se partir de dois princípios penais: a “presunção de inocência” e o “in dubio pro" réu com a seguinte consequência: não pode o magistrado, em análise precária e inicial, partir da hipótese de dolo eventual, pois o título de imputação, na dúvida, deve ser o mais favorável ao agente até que o contrário seja demonstrado por meio do devido processo legal.
Conclui-se com isso que a teoria dominante no Brasil não apresenta um critério penal claro na distinção do dolo eventual e da culpa consciente, com grave prejuízo ao réu, fazendo com que nem mesmo os penalistas possam afirmar sem grande dificuldade qual a modalidade de imputação. O problema, como hoje é tratado, passa a ser objeto de prova, e o que é pior, sem que se presuma o título de imputação menos gravoso, gerando prisões cautelares e procedimentos penais somente possíveis na presença de dolo. É preciso que a ciência do direito penal trabalhe a teoria do delito a fim de fornecer critérios capazes de facilitar a vida do prático aplicador, e não o contrário. Esses critérios, sem dúvidas, não podem ser buscados em categorias que levam em consideração de forma decisiva os elementos internos de querer, assumir o risco e não se importar, mas precisam, isto sim, partir de um modelo político-criminal que respeite os princípios penais tão caros na história do Direito.

Notas.

[1] V. Nélson Hungria, para quem “assumir o risco é alguma coisa mais que ter a consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso este venha efetivamente a ocorrer. Essa espécie de dolo tanto pode existir quando a intenção do agente dirige-se a um fim penalmente típico como quando dirige-se a um resultado extratípico.” (Comentários ao Código penal. V1. T. 1, p. 122)
[2] Diz-se do crime doloso, quando o agente quer ou assume o risco da produção do resultado. Na primeira hipótese dá-se o chamado dolo direto; na segunda, a hipótese de “assumir o risco”, tem-se o dolo eventual. Distingue-se ainda, para alguns autores, o dolo eventual e dolo direto de segundo grau. No dolo direto, o querer é direcionado a resultado típico que abrange não só o resultado pretendido, mas também os acontecimentos tidos como certos ou necessários na execução do plano. Cita Aníbal Bruno (Direito Penal: parte geral. Tomo II. p. 73) o exemplo real do sujeito que, pretendendo a morte de sua esposa, depôs uma bomba no avião que esta viajaria, matando também os demais passageiros. Neste caso, a morte da esposa e a dos passageiros é dolo direto de primeiro grau, a dos demais, de segundo. Ambas as modalidades são equiparadas pelo Código, assim como dolo eventual.
[3] V. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal, parte geral. 3ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008. p. 141 e seguintes; TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p.272; ROXIN, Claus. Derecho Penal, parte general, tomo I: fundamentos. La estrutura de la teoria del delito. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña. Madrid: Civitas, 1997.p. 423 e ss.
[4] Nesse sentido, TAVARES, “A teoria do consentimento ou da assunção é a teoria dominante e tem por base uma vinculação emocional do agente para com o resultado” (TAVARES, Teoria do injusto penal. p. 278).
[5] FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de direito Penal. 1986, p. 178.)


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