REFLEXÕES DE EDUARDO GALEANO

OS DIABOS DO DIABO

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O Diabo é muçulmano
Já Dante sabia que Maomé era terrorista. Por alguma razão o colocou num
dos círculos do inferno, condenado a penas perpétuas. “Viu-o marcado”,
celebrou o poeta na Divina Comédia, “desde a barba até ao baixo
ventre…” Mais de um Papa tinham comprovado que as hordas muçulmana, que
atormentavam a Cristandade, não estavam formadas por seres de carne e
osso, eram, sim, um grande exército de demónios que mais crescia quanto
mais sofria golpes das lanças, das espadas e dos arcabuzes.

Nos tempos actuais, os mísseis fabricam muitos mais inimigos que os
inimigos que estripam. Mas, o que seria de Deus, ao fim ao cabo, sem
inimigos? O medo manda, as guerras comem o medo. A experiência mostra
que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do céu.
Bem-vindos sejam os inimigos. Na Idade Média, cada vez que cambaleavam
no trono, devido à bancarrota ou à fúria popular, os reis cristãos
denunciavam o perigo muçulmano, libertavam o pânico, lançavam uma nova
Cruzada e santo remédio. Agora, faz muito pouco tempo, George Bush foi
reeleito presidente do planeta graças à oportuna aparição de Bin Laden,
o Satã maior do reino, que em vésperas da eleição anunciou, na TV, que
ia comer todos os meninos.
À volta do ano 1564, o demonólogo Johan Wier tinha contado os diabos
que estavam a trabalhar na terra, a tempo inteiro, pela perdição das
almas cristãs. Havia 7 409 127, que actuavam divididos em 79
legiões.
Muita água passou, desde aquele censo, debaixo das pontes do inferno.
Quantos somam-se, hoje em dia, aos enviados do reino das trevas? As
artes do teatro dificultam a contagem. Estes enganadores continuam a
usar turbantes, para ocultar os seus cornos, e largas túnicas tapam as
suas caudas de dragão, as suas asas de morcego e a bomba que levam
debaixo do braço.

O Diabo é judeu
Hitler não inventou nada. Desde há dois mil anos, os judeus são os
imperdoáveis assassinos de Jesus e culpados de todas as culpas.Como? Se
Jesus era judeu? E judeus eram também os 12 apóstolos e os quarto
evangelistas? Como disse? Não pode ser.As verdades reveladas estão para
além da duvida e não existem mais evidência que a sua própria
existência. As coisas são como se dizem que são, e se disse é porque se
sabe: nas sinagogas o Diabo dita a aula, e os judeus estão sempre
dedicados a profanar as hóstias e a envenenar as aguas benditas. Devido
a eles, ocorreram as bancarrotas económicas, as crises financeiras e as
derrotas militares; são eles que trouxeram a febre amarela e a peste
negra e todas as pestes. Inglaterra expulsou-os, sem deixar nem um, no
ano de 1290, mas isso não impediu que Chaucer, Marlowe e Shakespeare,
que nunca tinham visto um judeu, fossem obedientes à caricatura
tradicional e reproduzissem personagens judias segundo o molde do
satanismo do parasita sangue suga e o avaro usurário.Acusados de servir
o Maligno, estes malditos andaram os séculos de expulsão em expulsão e
de matança em matança. Depois da Inglaterra, foram sucessivamente
expulsos de França, Áustria, Espanha, Portugal e numerosas cidades
suíças, alemães e italianas. Os reis católicos, Isabel e Fernando,
expulsaram os judeus e também os muçulmano, porque sujavam o sangue. Os
judeus tinham vivido em Espanha durante 13 séculos. Levaram as chaves
das suas casas. Há quem ainda as tenha. Nunca mais voltaram. A
monstruosa carnificina organizada por Hitler culminou uma larga
história de perseguição e humilhação. A caça aos judeus foi sempre um
desporto europeu. Agora os palestinianos, que jamais a praticaram,
pagam a conta.

O Diabo é mulher
O livro de Malleus Maleficarum, também chamado “O martelo das Bruxas”,
recomendava o mais desapiedado exorcismo contra o demónio com tetas e
cabelo comprido. Dois inquisidores alemães Heinrich Kramer e Jakob
Sprengler, escreveram o livro, por incumbência do Papa Inocêncio VIII,
para fazer frente às conspirações demoníacas contra a Cristandade. Foi
publicado pela primeira vez em 1486, e até aos fins do século XVIII foi
o fundamento jurídico e teológico dos tribunais da inquisição em muitos
países.
Os autores defendiam que as bruxas, harém de Satanás, representavam as
mulheres no seu estado natural: “Toda a bruxaria provem da luxúria
carnal, que nas mulheres é insaciável". E demonstraram que “esses seres
de aspecto belo, contacto fétido e mortal companhia” que “encantam os
homens e os atraem, silvos de serpente, caudas de escorpião, para
aniquilá-los”.
E avisavam os incautos, citando a Bíblia: “A mulher é mais amarga do
que a morte. É uma armadilha. O seu coração, uma rede, e os seus braços
são correntes.”
Este tratado de criminologia, que enviou milhares de mulheres para as
fogueiras da inquisição, aconselhava a submeter à tortura todas as
suspeitas de bruxaria. Se confessavam, mereciam o fogo. Se não
confessavam, também, porque só uma bruxa, fortalecida pelo seu amante o
Diabo, podia resistir a semelhante suplício sem soltar a língua.
O Papa Honório III tinha sentenciado que o sacerdócio era coisa de
machos: as mulheres não devem falar. Os seus lábios transportam o
estigma de Eva, que fez perder os homens. Oito séculos depois, a Igreja
católica continua a negar o púlpito às filhas de Eva.
É o mesmo pânico que faz os fundamentalistas muçulmanos mutilar-lhes o
seco e tapar-lhes a cara. É o mesmo alívio pelo perigo conjurado que
leva os judeus muito ortodoxos a começar o dia sussurrando: “Graças,
Senhor, por não me teres feito mulher”.

O Diabo é homossexual
Desde 1446, os homossexuais marchavam para a fogueira em Portugal.
Desde 1497, queimavam-nos vivos em Espanha. O fogo era o destino que
mereciam estes filhos do inferno que do fogo vinham. Na América, pelo
contrário, os conquistadores preferiam atirá-los aos cães. Vasco Núñes
de Balboa, que a muitos atirou, acreditava que a homossexualidade era
contagiosas.
Cinco séculos depois, escutei dizer o mesmo ao arcebispo de Montevideu.
Quando os conquistadores apareceram no horizonte, só os azetecas e os
incas, nos seus impérios teocráticos, castigavam a homossexualidade – e
com a pena de morte. Os demais americanos toleravam-na, e em alguns
lugares celebravam-na, sem proibição nem castigo.
Esta provocação insuportável devia provocar a cólera divina.
Do ponto de vista dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes
desconhecidas que mataram índios como moscas, não vinham da Europa mas
do céu. Era assim que Deus castigava a libertinagem dos índios que
praticavam a anormalidade com toda a naturalidade.
Nem na Europa, nem na América, nem em nenhum lugar do mundo se levou em
conta os muitos homossexuais condenados aos suplício ou à morte pelo
delito de ser. Nada sabemos dos tempos distantes, e pouco ou nada
sabemos de agora.
Na Alemanha nazi, estes “degenerados culpados aberrantes de delito
contra a natureza” estavam obrigados a levar bem visível um triângulo
cor de rosa. Quantos foram parar aos campos de concentração? Quantos
morreram ai? Dez mil, cinquenta mil? Nunca se soube. Ninguém os contou,
quase ninguém os mencionou. Tão pouco se soube quantos foram os ciganos
exterminados.
Em 18 de Setembro do ano 2001, o governo alemão e os bancos suíços
resolveram "rectificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do
Holocausto”. Demoraram mais de meio século para corrigir a omissão. A
partir dessa data, puderam reclamar indemnização os homossexuais que
tinham sobrevivido a Auschwitz e a outros campos, se é que algum
estavam ainda vivo.

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