O PROBLEMA DE DEUS EM JEAN-PAUL SARTRE – PARTE I


O PROBLEMA DE DEUS EM JEAN-PAUL SARTRE – PARTE I

Sartre II
O filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) não escreveu apenas obras filosóficas, mas também ensaios, romances e peças de teatro. Em sua obra de caráter existencial, Sartre não deu uma importância excessiva ao problema religioso, pois não estava preocupado em discutir acerca da existência ou não existência de Deus. Antes disso, sua filosofia consiste em colocar o homem como responsável por todos os seus atos. Lançado num mundo sem justificativa, o indivíduo projeta-se no futuro, escolhe um sentido para sua vida, já que ela não possui um sentido a priori.
Desta forma, o existencialismo de Sartre está inteiramente estruturado no fato de que a existência humana precede sua essência, e esta é construída através da liberdade responsável que o homem manifesta ao escolher sua própria vida. Nada, nem mesmo Deus, pode justificar o homem ou retirá-lo de sua liberdade total e absoluta, ou ainda salvá-lo de si mesmo. No presente texto, buscamos fazer uma análise de sua obra filosófica e literária à procura dos fatores que explicam e fundamentam o ateísmo sartreano.
O existencialismo de Sartre e a condição do homem no mundo
Em 1946, alguns anos após a publicação de sua obra mais importante e de caráter puramente filosófico, O ser e o nada, Sartre profere uma conferência intitulada O existencialismo é um humanismo, na qual pretende defender seu pensamento de uma série de críticas e explicitar com mais clareza suas idéias. Nesta conferência, ao colocar o homem como pura subjetividade, Sartre demonstra que sua filosofia tira todos os subsídios de uma postura absolutamente atéia, o que consiste em considerar que a existência humana precede sua essência. Para tal, Sartre cita o exemplo de um objeto fabricado, mais precisamente um corta-papel.
Ao concebermos um corta-papel, devemos admitir que esse objeto foi fabricado por um artífice, que já possuía uma idéia prévia, um conceito do que seria este objeto, pois é impossível imaginar a fabricação de algo sem saber exatamente para que irá servir. No caso do objeto, a sua produção precede sua existência, isto é, antes de o objeto ser fabricado, já possuíamos um conceito dele. Deste modo, quem crê em Deus, considera-o como um Artífice superior, no qual estaria implícito a noção do homem. De forma análoga, há alguns ateus que, como os do século XVIII, mesmo negando a existência de um Criador, admitem que o homem possui uma natureza humana, um conceito humano, que colocaria todos os homens numa mesma definição, pois são possuidores das mesmas características básicas. A essência, neste caso, continua a preceder a existência, e este é um princípio que podemos observar em quase toda a história da filosofia.
Sartre afirma o contrário. Dizer que a existência precede a essência não é simplesmente suprimir Deus e negar a natureza humana em função da realidade humana. Dizer que a existência precede a essência é colocar o homem como um nada lançado no mundo, desprovido de uma definição. O homem surge no mundo e, “de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo” (Sartre, O Existencialismo é um Humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 6.). Ora, isso implica também o fato de que o homem só se faz num constante projeto, num incessante lançar-se no futuro. Somente assim o homem irá se definir como ser existente e consciente de si mesmo.
O existencialismo impõe ao homem a inteira responsabilidade no exercício de suas ações. Ao escolher sua vida, o homem também escolhe todos os homens. O valor de sua escolha é determinado pelo fato de que ele não pode escolher o mal. Nas palavras de Sartre: “o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos” (idem, p. 7). A imagem que moldamos de nós deve servir, em última instância, para todos os homens. Nesse sentido, o homem não é só responsável por si, mas também pela humanidade inteira.
O existencialismo ateu de Sartre busca manter sua coerência atribuindo ao homem o compromisso de construir a sua própria essência. Lançado no mundo sem perspectivas, o homem determina sua vida ao longo do tempo, e descobre-se como liberdade, ou seja, como escolha de seu próprio ser no mundo. Ao falar da condição do homem, Sartre relaciona-o com a angústia, o desamparo e o desespero. Mas o que significa definir o homem nestes termos?
A angústia consiste simplesmente na descoberta de que o homem, quando escolhe, não é apenas o legislador de si mesmo, mas alguém que, ao mesmo tempo, escolhe a si mesmo e a humanidade inteira. O homem que descobre isso não consegue escapar de sua total e absoluta responsabilidade, que gera o sentimento original de angústia. Por isso é o próprio homem quem determina o valor de sua escolha, pois ele tem o constante dever de se perguntar: “o que aconteceria se todo mundo fizesse como nós?” (ibidem, p. 7) Assim, a ação do homem, vista como a escolha constante de seu destino, é propriamente constituída por angústia.
Ao falar de desamparo, Sartre quer simplesmente dizer que “Deus não existe e que é necessário levar esse fato às últimas conseqüências” (idem, p. 8). Desamparo significa que o homem não possui nada a que possa se segurar, nem dentro nem fora dele; não existem bases para direcionar suas ações, a não ser sua liberdade e responsabilidade. Não existem valores eternos preestabelecidos que impedem o homem de agir, nenhuma justificativa ou desculpa que o retire de sua escolha. Em qualquer situação, somos nós que escolhemos, subjetivamente, aquilo que provém de nossa própria vontade. O homem está só: “o desamparo implica que somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser. Desamparo e angústia caminham juntos” (ibidem, p. 12). Não obstante, o desespero está ligado ao fato de que o existencialista não espera nada de um mundo transcendente. Se o desamparo é ausência de Deus, o desespero é não esperar por ele. As circunstâncias, deste modo, não podem servir como evasivas para nossos atos, nem como subterfúgios para nossos fracassos. Des-espero: o que torna nossa ação possível é apenas a nossa própria vontade. Por isso Sartre escreve: “o homem nada mais é do que o seu projeto; só existe na medida em que se realiza; não é nada além do conjunto de seus atos, nada mais que sua vida” (idem, p. 13). Projeto, liberdade, responsabilidade, e existência que escolhe sua essência são termos constantes na obra de Sartre, e que também se interagem e são correlatos. Assim, podemos dizer que é inerente à condição do homem sua situação autêntica de angústia, desamparo, desespero.
A gênese do ateísmo: a literatura e a influência familiar
Sartre abandonou a crença quando possuía apenas 11 ou 12 anos. Numa entrevista concedida à Simone de Beauvoir (A Cerimônia do Adeus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981), reconhece que o pensamento da não existência de Deus surgiu naturalmente, de repente:
…e sob a forma de uma pequena intuição, lembro-me muito bem que disse a mim mesmo: Deus não existe. É notável pensar que pensei isso aos onze anos, e nunca mais tornei a fazer-me a pergunta até hoje, isto é, durante sessenta anos (…). Não recordo haver-me jamais lamentado ou surpreendido pelo fato de Deus não existir. (Idem, p. 589-590.)
Sartre considera essa intuição como algo concreto, uma verdade evidente e sem pensamentos prévios. Com sua família de cunho católico (a avó) e protestante (o avô), mas uma religiosidade aparente, Sartre freqüentava a igreja, mas nada disso era realmente convicção. Por si só, e aos poucos, a simpatia por Deus perdeu seu efeito: “eu tinha necessidade de Deus, ele me foi dado, eu o recebi sem compreender o que procurava. Por não deitar raiz em meu coração, vegetou em mim algum tempo, depois morreu” (As Palavras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 75). Ao invés de adorar a Deus, Sartre adorava as palavras.
Sartre cresceu no meio dos livros. Aprendeu a ler na biblioteca particular de seu avô, onde encontrou na literatura um refúgio à religião. Numa poética passagem de As palavras, Sartre descreve sua relação primeira com os livros:
Nunca esgravatei a terra nem farejei ninhos, não herborizei nem joguei pedras nos passarinhos. Mas os livros foram meus passarinhos e meus ninhos, meus animais domésticos, meu estábulo e meu campo; a biblioteca era o mundo colhido num espelho; (…) Eu achara minha religião: nada me pareceu mais importante do que um livro. Na biblioteca, eu via um templo. (Idem, p. 37-44.)
Este contato com os livros e o amor pelas palavras fez de Sartre o escritor que conhecemos hoje. É o que podemos observar em sua autobiografia As palavras, onde ele descreve não só a experiência de seu ateísmo, como também a influência de sua família que, para ele, representava apenas um caráter superficial ou ainda artificial da fé. Em seu ambiente familiar, Sartre descobriu um cristianismo que não se baseava na fé, mas na questão social. Os fiéis alimentavam tradições que não tomavam a cargo, nem refutavam: eram cristãos que nunca haviam se tornado cristãos. O ateu era alguém que também possuía convicções religiosas, um indivíduo que
se obrigava a provar a verdade de sua doutrina pela pureza de seus costumes (…), um maníaco de Deus que via em toda parte. (sic) Sua ausência e que não conseguia abrir a boca sem pronunciar Seu nome. (Ibidem, p. 72.)
Desta forma, Sartre reconheceu na família uma religião pouco convicta, confundida com os valores espirituais e morais, e ainda, com a pureza da arte encontrada nas igrejas: “Não sabiam, imagino, se era a música que as influenciava, por ser religiosa, ou se era a religião, por ser harmoniosa” (Diário de uma Guerra Estranha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 94). Os seguidores, sob este aspecto, eram pessoas mascaradas, ocultas na face de um cristianismo sociológico, expresso na indiferença e na contradição familiar: “julgava-se então muito mais difícil ganhar a fé do que perdê-la” (As Palavras, p. 73). No entanto, apesar de Sartre discordar do cristianismo, este não encerra o homem na coagulação abstrata onde Deus seria aquele que impede a ação do homem. Para os cristãos, a causa da liberdade humana está em Deus, que o lança no mundo através do amor, e este representa a relação primeira dos homens entre si e da busca de seu futuro.

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